Paraíso (aqui se borda aqui se paga), de Julio Villani

Paraíso (aqui se borda, aqui se paga) 

Segundo Davi Kopenawa, líder espiritual e político Yanomami, na cosmovisão de seu povo a queda do céu é uma ameaça constante. Em seu papel de xamã, anuncia: “Estamos apreensivos, para além de nossa própria vida, com a da terra inteira, que corre o risco de entrar em caos. Os brancos não temem, como nós, serem esmagados pela queda do céu. Mas um dia talvez tenham medo disso tanto quanto nós.i Aos poucos, tanto a ciência quanto eventos climáticos cada vez mais perturbadores e perceptíveis parecem ecoar uma realidade equivalente àquela pregada pelo xamã em sua visão intrinsecamente mítica e poética do universo. 

Nestes tempos sombrios de queda do céu, somente uma leitura poética do mundo é capaz de propor uma inversão: a de elevar o chão. É o que faz Julio Villani, na Capela do Morumbi. 

Ele – que, menino, procurava no chão da fazenda dos pais, em Marília, as chamadas “pedras de raio”, associadas a meteoritos caídos do céu, mas na realidade vestígios arqueológicos dos povos originários – hoje recobre os visitantes com um pedaço de terra bordada no lugar do céu-paraíso comum nas igrejas barrocas. 

Se para os Yanomami o céu é sustentado por hastes de metal, aquele imaginado por Julio Villani para a Capela do Morumbi vence a gravidade, com a garantia de contrapesos de cimento. Nessa contraversão, o artista faz-se acompanhar de Manoel de Barros, poeta mato-grossense dos olhos resolutamente voltados para o chão. “[…] gostar das coisinhas do chão, antes que das coisas celestiais […]”ii e outros versos do poeta transformam-se aqui numa espécie de oração, que inverte a ordem dos valores vigentes neste mundo. 

A obra de Julio Villani esteve sempre em diálogo direto com a poesia, tendo conversado com Jacques Prévert, Charles Baudelaire, Julio Plaza, com os irmãos Campos, entre tantos outros. E muito antes desta nossa era – por muitos entendida como Antropoceno, uma vez que todo o planeta e todas as suas formas de vida são afetados pelas mudanças que provocamos –, outro poeta, Dante, invocava mito e cosmovisão para propor um caminho do inferno ao paraíso. Guiado por Virgílio, poeta romano da Antiguidade pré-cristã, Dante criou personagens-poetas que cruzam diferentes instâncias em um percurso por vezes íntimo, no sentido de um caminho espiritual pessoal, por vezes envolvendo analogias e elementos da sociedade em que ele vivia. 

A referência à Divina Comédia, aqui, não se dá apenas porque tanto Dante quanto Julio são conduzidos nas respectivas obras por poetas, nem por ser o Paraíso coisa geralmente ligada ao Céu, este que agora ameaça cair. É mais porque, ao estar em uma capela, a obra de Julio Villani inevitavelmente convive com a carga simbólica e a cosmovisão do Ocidente cristão que, no caso da Capela do Morumbi, mescla-se concretamente com a terra, por meio de suas paredes de taipa de pilão, das ruínas de uma antiga fazenda de c.iii O Céu idealizado pela tradição cristã, que agora faz cair o céu de fato, no inferno climático e humanitário em que vivemos, apontado, há tempos, entre outros, pelos povos originários, condensa-se na terra colonial desse espaço, batida pelo escravizado e pelo “caipira”. 

Não é a primeira vez que o artista instala uma obra em ambiente religioso. Sua estreia deu-se com a criação de um lençol recobrindo inteiramente o dormitório da abadia cisterciense do Thoronet, no Sul da França – o imenso bordado pairando sobre os sonhos dos monges que lá viveram no século 13. O título da obra, retirado de uma citação de Derrida – Não se pode pensar o encerramento daquilo que não tem fim –, fazia alusão ao questionamento perpétuo do sentido das coisas e da impossibilidade de um fim em si mesmo. Já na Capela do Morumbi, um edifício da herança colonial paulista, Villani anuncia o fim no título da obra, em tom de profecia: Aqui se borda, aqui se paga. 

Parafraseando Jean de Loisy, curador da mostra na França, Aqui se borda, aqui se paga é mais um mosaico das referências teóricas, emocionais e geográficas de Julio Villani. “Uma cartografia de múltiplas linhas, como um corpo que revela na pele as suas alegrias, as suas angústias, os seus desejos, a sua viagem por diferentes países e épocas.”iv Nesse sentido, os lençóis bordados de Julio, de onde nasce este grande chão suspenso, fazem lembrar a obra de Bispo do Rosário, em seu esforço obsessivo de organizar as coisas do mundo em forma de narrativa bordada, numa preparação delicada para o Dia do Juízo Final. Ambos têm em comum uma proposta estética que organiza e apresenta uma mesma lógica: a de valorizar as “soberbas coisas ínfimas”v que nos cercam.  

O trabalho delicado e meticuloso de linha e agulha de Paraíso, feito de tecido e novelos de lã colorida, foi realizado a várias mãos, no ateliê de trabalho de Lina Bo Bardi, arquiteta italiana que soube tão bem enxergar e dar a ver a sofisticação da mão do povo brasileiro em sua cultura material. 

E é justamente na Casa de Vidro, por ela projetada em 1951, na mesma época em que a Capela se reerguia (1950), que Julio Villani apresenta, simultaneamente, a mostra Museu de Tudo.vi Com título emprestado a João Cabral de Mello Neto, o artista celebra aqui diferentemente as coisas ordinárias que nos cercam, por meio de um conjunto de criaturas curiosas, inventadas a partir de objetos do cotidiano. 

Coincidência do calendário – ou prova da concordância entre a obra de Julio Villani e a visão de dona Lina – uma das “criaturas” do artista encontra-se exposta na mostra Ensaios para o Museu das Origensvii (baseada no projeto histórico do crítico Mário Pedrosa), em diálogo com Tarsila do Amaral e Mestre Valentin, como imagem do acervo do MAM de Salvador, que Lina cunhou.  

Este roteiro por si só já revela a obra de um artista múltiplo, de estirpe moderna, coerente com seu jeito de ver o céu na terra.  

Roberta Saraiva *

(*) Historiadora formada na USP, é diretora técnica do Museu da Língua Portuguesa. Foi diretora técnica do Museu Lasar Segall, curadora de exposições, como Calder no Brasil, realizada em 2006, pela Pinacoteca do Estado de São Paulo, e Saul Steinberg – As aventuras da linha, realizada em 2011, no Instituto Moreira Salles, RJ, e na Pinacoteca do Estado de São Paulo. Diretora-executiva da Expomus de 2009 a 2021, dedicou-se ao intercâmbio de exposições e à difusão do Brasil no exterior.  

i In KOPENAWA, Davi; ALBERT, Bruce. A queda do céu: palavras de um xamã yanomami. Beatriz Perrone Moisés (trad.), Eduardo Viveiros de Castro (pref.). São Paulo: Companhia das Letras, 2015, 1ª ed., pág. 498. 

ii BARROS, Manoel. “Retrato do artista quando coisa” (fragmento do poema). In Poesia completa. São Paulo, Leya, 2010, p. 361.  

iii Obra de reconstituição realizada pelo arquiteto russo Gregori Warchavchik. 

iv Citando Agnaldo Farias. In: Pinturas E Objetos Indiretos, Pinacoteca do Estado de São Paulo, 2002. (Catálogo da exposição). 

v BARROS, Manoel. Op. cit. p. 361. 

vi Museu de Tudo, Casa de Vidro | Instituto Bardi. 2 de setembro a 4 de novembro de 2023. 

vii Instalada no Instituto Tomie Ohtake e no Instituto Itaú Cultural, de 9 de setembro 2023 a 28 de janeiro de 2024. 

Projeto realizado por intermédio da Lei Rouanet – Lei Federal de incentivo à Cultura (Lei 8.313/1991), e conta com o patrocínio do Bradesco, apoio do Grupo Iguatemi e parceria institucional do Instituto Bardi/ Casa de Vidro (@institutobardi).

Paraíso (aqui se borda aqui se paga) – Júlio Villani

Capela do Morumbi | Museu da Cidade de São Paulo
Avenida Morumbi, 5387 – Morumbi, São Paulo

14 de outubro 2023 a 6 de abril 2024.
Terça a domingo, das 9 às 17h.

Entrada gratuita, sem necessidade de agendamento ou retirada de ingresso.

Serviço educativo disponível.

Intérprete em libras disponível, com agendamento prévio a partir do e-mail: educativomuseudacidade@gmail.com

 

©Paraíso (aqui se borda aqui se paga), de Júlio Villani. Capela do Morumbi/ MCSP, 2023.