O que diriam os gatos?
FATO GATO é o terceiro projeto que o casal Ana Dias Batista e João Loureiro realiza em colaboração. Ele foi precedido de Économie domestique (2013, Paris) e Economia doméstica: miolos (São Paulo, 2022). No primeiro, o espaço de exposição La Maudite em Paris foi transformado numa espécie de habitação em que os trabalhos anunciavam a ausência humana por meio da presença das coisas: migalhas de pão, moscas, teias de aranha… No segundo, de 2022, a dupla ocupou uma barraca de frutas da feira livre do Pacaembu, em São Paulo, transformando-a em espaço de exposição. Sobre a banca, era vendida uma porção de cérebros de melancia ou melhor esculturas de melancias em forma de cérebro humano. O projeto fazia parte de uma feira de arte e não de rua ou era feira de rua e virou feira de arte, enfim… o humor é só um dos elementos que acionam toda a cadeia de significados que a dupla coloca em movimento para fazer funcionar sua economia, que é tanto assunto como condição. Vender cérebros como produtos e por vezes morar em um espaço expositivo fazem parte da economia doméstica de um casal de artistas.
A problematização do contexto em que a obra aparece é um dos principais interesses desses trabalhos. Em FATO GATO essa problematização ganha mais camadas históricas. O espaço em questão já passou por diferentes condições, integrou debates importantes sobre a noção de patrimônio histórico e justamente a indefinição parece ser seu tropos principal. Até a década de 1940 havia somente as ruínas de taipa no local, e ainda hoje não se sabe se elas são realmente resquícios de uma capela. Nesse período, junto ao empreendimento imobiliário que transformou o bairro em residência de uma elite abastada, decidiu-se por “reconstruir” a capela em estilo neocolonial, mas preservar a memória das técnicas construtivas dos séculos passados, resultando em uma arquitetura híbrida, de difícil classificação. A condição de indefinição entre ruína e construção da Capela do Morumbi acaba por expor uma banalização dos instrumentos preservacionistas à época e seus conflitos com o planejamento da cidade, historicamente ditado pelo desenvolvimento econômico e pela noção conservadora de progresso. Algo da indefinição permanece quando o local se torna parte do Museu da Cidade, na década de 1980, refletindo uma condição generalizada de instituições culturais públicas no Brasil. Apesar da agenda regular de eventos, outros problemas aparecem, como a inconstância na destinação de recursos, a gestão burocratizada e a dificuldade de atrair o público, sobretudo o não especializado.
Ao lidar com o espaço, as escolhas de Ana e João vão na direção contrária às de Gregori Warchavchik (1896-1972), arquiteto eleito para a reconstrução da capela. Em FATO GATO as obras acontecem de modo a revelar o que já existe, mas não aparece à primeira vista. Os artistas se interessam pelos espaços exteriores ao prédio, identificando e intervindo nas dinâmicas sociais dos ocupantes do local: seus funcionários e a fauna e a flora dos jardins, que, aliás, foram deixados em segundo plano nas reformas que se sucederam ali. Por conta da baixa frequentação nas exposições, as necessidades do dia a dia fizeram com que o espaço fosse se domesticando, se adaptando aos seus ocupantes. A assídua população de gatos é um dos indicadores mais evidentes desse processo de desinstitucionalização da Capela. O gato doméstico (Felis catus) é uma espécie urbana que evoluiu do gato selvagem (Felis silvestres) e se distingue dele justamente por viver na companhia de humanos. Chegou perto de nós há séculos, atraído pela quantidade de ratos que nossas recém-criadas cidades agrupavam e, desde então, mantemos com ele uma relação simbiótica: comida abundante versus controle de pragas. É ganha-ganha e aprendizado mútuo. Cerca de doze gatos contam com o cuidado dos funcionários do museu.
As obras Arranhador e Erva-dos-Gatos, instaladas sobre o telhado e no jardim, respectivamente, ativam e reorganizam (ou desorganizam) os hábitos da comunidade felina. Erva-dos-Gatos é uma plantação da espécie Nepeta cataria, conhecida por seus efeitos psíquicos (calmantes ou excitantes) em felinos. Os canteiros em quadrícula que arranjam o plantio funcionam também como uma retícula de análise e diagnóstico do estado do terreno, oferecendo uma visão em planta-baixa. Entendendo a economia como um sistema que deve se equilibrar, além de fornecer erva para o agrado dos gatos, os artistas realizam a secagem da planta no interior da capela – ambiente perfeito: escuro e seco – a fim de transformá-la em produto potencialmente comercializável, devolvendo-a para o tecido social no fim de seu ciclo de vida. Arranhador é uma grande escultura em cima do telhado para uso dos gatos, com tocas para proteção e elementos para arranhar e saltar. Um volume de isopor esculpido com fio quente, estruturado e revestido com tecido cinza que remete ao saber fazer dos carros alegóricos e aponta para uma aproximação crítica do minimalismo estadunidense.
Já Gato Arrepiado me parece uma homenagem a essa espécie companheira, brava sobrevivente de séculos de urbanização caótica. Uma imagem de história em quadrinhos e totalmente integrada ao nosso imaginário, à nossa cultura visual. Um tapete, a paragem preferida do gato, aqui como bandeira escultura de advertência. Gato arrepiado é sinal de perigo.
Camila Bechelany
© Fato Gato. Capela do Morumbi/ MCSP, 2023.
FATO GATO, de Ana Dias Batista e João Loureiro
Capela do Morumbi | Museu da Cidade de São Paulo
Av. Morumbi, 5387 – Morumbi, São Paulo – SP.
25 de março de 2023 a 14 de maio de 2023
Terça a domingo, das 9h às 17h.
Entrada gratuita, sem necessidade de agendamento ou retirada de ingresso.
Serviço educativo disponível.
Intérprete em libras disponível, com agendamento prévio a partir do e-mail: educativomuseudacidade@gmail.com
©Fato Gato. Capela do Morumbi/ MCSP, 2023.